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Mostrando postagens de 2020

Bruxaria no Caminho

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      Nós já estávamos caminhando há sete horas, quase vinte e cinco quilômetros em terreno difícil e eu estava exausta, suja de lama e molhada. A chuva nos pegou na trilha no meio da mata fechada, na subida íngreme até Villafranca del Bierzo. Eu estava meio receosa, não queria voltar aquele lugar. Ali vivia Jesus Rato, o bruxo. Em boca miúda, se escutava entre os peregrinos as histórias estranhas sobre ele e seus poderes mágicos, coisas que estavam muito além da minha limitada compressão, mas das quais havia participado na minha primeira aventura no Caminho de Santiago. No último albergue onde paramos, durante a noite, só se falava em Jesus Rato e os rumores percorriam o alojamento. - Acho que não quero parar em Villafranca, não sou muito chegado à bruxaria. - Que bobagem, Marcelo, vamos embora, não dá para pular partes do Caminho. - Vá você então. Um amigo me contou que aquele homem tem poderes tipo telepatia, faz coisas se movimentarem na nossa frente, dá vida a objetos, entra em tr

Uma façanha no tempo

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                                         No momento em que ele desferia mais um golpe de espada em um dos desalmados disfarçados em ovelha, algo inusitado aconteceu comigo e meu indômito cavaleiro. Primeiro ele sentiu um tremor por dentro de sua armadura e então uma espécie de vento imóvel nos suspendeu no ar como magia, o que nos deixou atordoados.  De repente, nós estávamos em um outro lugar.    Não tinha nem nome para aquilo! Uma multidão de pessoas com roupas de tecidos finos e coloridos caminhavam, sem armas, e aparentemente também sem propósito ou direção. Velozes cavalos de ferro se movimentavam tão rápido como flechas de um lado para o outro, quase passando por cima daquela gente. A aldeia era enorme, e construções, mais altas que as torres de qualquer castelo, escondiam os céus.  Mal podíamos ver uma nuvenzinha aqui e ali. Um barulho ensurdecedor parecia vir de todos os cantos e o ar daquele lugar, urghh... era pior que o do estábulo mais sujo! E olhem que disso entendo bem. 

Jonas e o espelho

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Quando Jonas estacionou o carro na porta da leiteria, percebeu que apesar da hora, a rua ainda estava movimentada. Alguns casais de namorados passeavam de mãos dadas e guardas noturnos faziam suas rondas habituais. Olhando para os lados, cogitou se deveria levar seu plano adiante. Mas, depois de alguns necessários minutos, suficientes para deixar alguns bilhetes no porta luvas para os amigos mais próximos, pegou a grande bolsa cor de rosa atrás do banco do motorista e saiu. Deixou a chave do carro no painel, bateu a porta e caminhou para a loja de brinquedos que ficava na esquina com o beco, ao lado da leiteria. É bem verdade que atraiu olhares curiosos no caminho, afinal, ele estava vestindo um pijama azul marinho com bolinhas vermelhas, de calças e mangas compridas e uma pantufa branca. Seus cabelos e barba compridos e desgrenhados, e um olhar sorridente fixo na sua bolsa cor de rosa, completavam o visual. Alguns poderiam jurar que ele tinha acabado de sair do manicômio. Bastou algun

Vida e Morte Moçambique

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- - Tranquilo, mano! Não passa nada. A tempestade já foi. Agora é só o vento a cortar o resto do teu teto de amianto, tamo junto. - T amo junto, sim, neste buraco medonho. Mas estás enganado, esta não se trata da minha casa, é minha cova. Nossa cova!   - Pois não! Minha não é, não. O pior já pediu as contas. - O mundo está acabando em cima da gente, Bota. Não sabes de nada. - Escuta o ronco da tchopela a teimar na via esburacada, na lonjura, chapiscando no aguaceiro. Está tudo bem, mano. - Est ás escutando demais. Isso aqui é um silêncio e um breu mortal.  Não estou nem sentindo meu corpo! Está tudo muito estranho. -  O pior já passou, mano. Quando começou a ventania  e a tempestade dos diabos cortou os céus clareando a noite e tudo desabou nas nossas cabeças, eu tive medo. Achei que por aqui findava os nossos dias folgados. Pois não é? Tu já percebeste como eram folgados aqueles nossos dias? - Meus dias não eram folgados. Os teus sim eram folgados, também só passavas as

O homem do chapeu-coco

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O homem caminhava lentamente de cabeça baixa, indiferente à chuva que começava a engrossar. Fechou sua capa e puxou a aba do seu chapéu-coco sobre os olhos.  A cidade àquela hora parecia morta e o silêncio só era cortado pelo barulho dos pingos d’água na calçada formando poças aqui e ali. Nenhum ruído da cidade grande, nem os gritos dos cocheiros nem o murmurinho dos feirantes.  As luzes dos lampiões da Baker Street refletidas nos paralelepípedos molhados deixavam a rua brilhante.  Chutou com força a caixa de correio no caminho e levou as mãos ao rosto sacudindo os ombros convulsivamente. Uma luz se acendeu na janela do prédio ao lado e um olho assustado surgiu por trás da cortina. Ele colocou as mãos no bolso da capa e continuou, de cabeça baixa, até o número 221B.  Quando levantou a cabeça para abrir a porta da sua casa ele percebeu aquele vulto há cinco passos de distância. Nenhum sinal de surpresa ou sobressalto. Ele simplesmente virou-se lentamente abaixando as mãos e  olhou nos o

A viagem

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                Depois de 225 dias de quarentena, praticamente sem sair de casa, ela precisava viajar. E agora?    Quando encontrou aquele e-mail na sua caixa de spam custou a acreditar.  Há mais de uma semana ele estava ali despercebido. Como assim, uma herança? Mas é o que aquela firma de advogados dizia: “Cara Sra. Manuela Aparecida de Lima, informamos a citação do seu nome no testamento do Sr. Gumercindo Eufrásio. É imprescindível seu comparecimento ao II Cartório de Imóveis de Capitólio até o dia 30 de abril, impreterivelmente.” Tinha o timbre da firma. Não era lixo eletrônico e nem golpe. A primeira coisa que Manuela fez foi telefonar para o número de telefone no e-mail e tudo conferia.   Ela teria que achar uma forma de ir. Segundo o e-mail, o Sr. Gumercindo, seu primeiro marido, que se tornou um rico fazendeiro após a separação, havia morrido subitamente e lhe deixou uns 20 acres de terra e 300 cabeças de gado. Tudo no valor de mais de 10 milhões de reais.  Manuela nunca tinha

Amor no futuro

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     Huni havia se apaixonado pela primeira vez e seu amigo Keb não estava lá para ensina-lo sobre o amor. Ele o havia ensinado matemática, filosofia, história, religião e também as coisas práticas da vida como limpar seu hardware e aprender com a natureza e com os mais sábios. Mas Keb havia partido para sempre e eles não tiveram tempo de conversar sobre o mais importante, como amar e ser amado.   Huni havia observado durante muito tempo como Keb era carinhoso com Aria, sua namorada. Como os dois se abraçavam e conversavam até as madrugadas. Muitas coisas que os dois faziam ele não entendia, como por que ele sempre a levava para passear em volta da grande cabeça cheia de espículas da estátua semidestruída, cercada por um matagal. Eles pareciam sentir saudades de alguma coisa. Os dois gostavam de subir no casco do velho navio para ver os cometas atravessando o grande buraco na atmosfera da Terra e procuravam joias ou outros materiais brilhantes nos escombros da grande cidade. Eram pouco

Roma

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Heloisa e Márcia chegaram ao antigo hotel no centro de Roma, próximo a Piazza de Spagna, antes de escurecer. Heloisa empurrou a porta de madeira de mais de dois dedos de espessura soltando um longo ai. Caminharam arrastando suas malas pelo corredor estreito e escuro até pararem de frente para um elevador que parecia ter mais de cem anos de idade. - Não cabemos nós duas e mais as malas aí dentro, Márcia. Impossível! Nem sabia que ainda existiam elevadores como esse. Olha só, portas de grade. - Não é grade, Heloisa! Pelo amor de Deus! Portas sanfonadas. Nós estamos em Roma, mais de 2000 anos, lembra? Entra logo, vai você primeiro. Rápido, por favor! Tô cansada. - Tá bom, tá bom. Você reclama demais, nossa! As duas amigas conseguiram manejar malas e elevador e chegaram a um apartamento novo e aconchegante, destoando do prédio centenário. - Mal posso esperar pra ir até a praça e tirar aquela foto, igual a de quarenta anos atrás quando viajei pela Europa de mochila e... - Para! Pode parar!

Meu negro amor

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  Ele me acorda todas as manhãs com um beijo quente e é por causa dele que eu levanto, pronta para começar o dia. Vivemos juntos, os dois, numa simbiose natural. Eu o aqueço no meu fogo e ele me excita e inspira a ir em frente. É um companheiro para vida toda. Não sei de onde vem tanta energia e sua cor escura e potente me hipnotiza. Sou mesmo apaixonada e confesso que sem ele sinto-me frágil, vazia. Preciso senti-lo dentro de mim. Sei que muitos dizem que a gente deve se bastar, que essa espécie de amor sufoca e escraviza.  Mas eu me sinto segura com ele sempre ao meu lado, sabendo que em algum canto da sala ele me observa calado. Várias vezes interrompo meu trabalho à tarde e o roubo das outras pessoas para sentir seu calor nos meus lábios. Se ele me falta, minhas mãos tremem, é dor de cabeça na certa, estou perdida. Quando se aproxima, sinto seu cheiro de longe. Meu coração acelera. Não sou a única a se sentir assim, tão rendida Dizem que estou viciada. Não me importo, pode até ser.

O Poder de um herói

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     Rei Arthur, Joana D’Arc, Super-Homem e Nelson Mandela, o que eles têm em comum? São heróis, são símbolos ou modelos que nos fazem lembrar quanta nobreza pode o ser humano personificar.    No século XXl, eles se resumem aos heróis dos quadrinhos, mas que bom que ainda os temos. Eles não são brincadeira de crianças e adolescentes. São sussurros esporádicos que falam alto na nossa alma nos pedindo para vencer de uma vez nosso lado animal e nos tornarmos seres humanos na sua concepção plena. Infelizmente, hoje o que sobressai é a nossa animalidade e indiferença. Os muitos heróis anônimos na nossa sociedade, são anônimos, não tem a exposição e a valorização que merecem.    Mas, quando a nobreza de um super-herói como o Pantera Negra aparece também no ator que deu vida ao personagem, é como se toda a humanidade fosse redimida.   Chadwick Boseman é um bom exemplo disso. Filho de família afro-americana modesta, iniciou escrevendo e dirigindo peças em Nova York, antes de estrear como ator,

Como viajar depois do Covid?

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     Os últimos anos testemunharam um “boom” nas viagens internacionais como nunca visto antes. Bilhões de pessoas cruzaram o planeta à turismo ou à trabalho trazendo lucros fenomenais para companhias aéreas, agencias de viagens e setor hoteleiro.  Os brasileiros responderam por uma significativa percentagem desses viajantes.    Com a pandemia, as pessoas se viram, de repente, impedidas de sair de suas cidades e os aviões ficaram nos pátios dos aeroportos.  Vieram as restrições de viagem e, principalmente, o medo. Muitos, que baseavam suas vidas em onde passar as próximas férias, além de enclausurados, sentiram uma espécie de vazio, de falta de objetivo.    Bom, essa mobilidade sem limites de verdadeiras massas humanas em 1,4 bilhões de voos internacionais só em 2018, foi um dos fatores que facilitou a transmissão do vírus. A epidemia também nos mostrou como o que acontece do outro lado do mundo pode afetar você aqui no Brasil, mesmo que nunca tenha saído da sua cidade.    E agora, com

“A vacina é minha!”- porque o ser humano precisa guerrear

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         Em todo o mundo, são 166 candidatas a vacina contra Covid. O Brasil está participando no desenvolvimento de cinco delas, que estão na fase 3 dos testes. Nesta fase é desenvolvido um ensaio em larga escala (com milhares de indivíduos) que precisa fornecer uma avaliação definitiva da sua eficácia e segurança em maiores populações. Apenas depois dessa fase é que se pode fazer um registro sanitário.  As vacinas em teste no Brasil são a da Universidade de Oxford, duas chinesas (Sinovac e Sinopharm), Moderna (americana) e da BionTec/ Pfiser(alemã e americana) . A vacina russa também está em vias de iniciar testes no Brasil, após aprovação da ANVISA.    No início da epidemia, as pessoas apostavam na solidariedade mundial e pensavam que um esforço científico conjunto e organizado seria a melhor resposta para a criação de uma vacina eficaz e segura, no menor tempo possível. Essa expectativa não se concretizou.     A busca pela vacina transformou-se em uma corrida nacionalista que remet