Vida e Morte Moçambique


Mortos pelo ciclone Idai se aproximam de mil em Moçambique e ...-


- Tranquilo, mano! Não passa nada. A tempestade já foi. Agora é só o vento a cortar o resto do teu teto de amianto, tamo junto.

- Tamo junto, sim, neste buraco medonho. Mas estás enganado, esta não se trata da minha casa, é minha cova. Nossa cova! 

- Pois não! Minha não é, não. O pior já pediu as contas.

- O mundo está acabando em cima da gente, Bota. Não sabes de nada.

- Escuta o ronco da tchopela a teimar na via esburacada, na lonjura, chapiscando no aguaceiro. Está tudo bem, mano.

- Estás escutando demais. Isso aqui é um silêncio e um breu mortal.  Não estou nem sentindo meu corpo! Está tudo muito estranho.

O pior já passou, mano. Quando começou a ventania  e a tempestade dos diabos cortou os céus clareando a noite e tudo desabou nas nossas cabeças, eu tive medo. Achei que por aqui findava os nossos dias folgados. Pois não é? Tu já percebeste como eram folgados aqueles nossos dias?

- Meus dias não eram folgados. Os teus sim eram folgados, também só passavas as horas a encostar no meu trabalho, pra ti sempre a melhor parte. Não me toca mais. Nossos dias vão se findar devagarinho, aqui nesse buraco dos infernos.

Para de falar desse jeito, Matunha! Nós havemos de sair daqui. 

- Podes sonhar quanto queiras. Daqui saimos os dois esticados e mortinhos, com a boca cheia de matope. 

-Pois não! Minha boca tá é sentindo o gostinho da chima que minha dona faz. Humm... que delícia! Será que tem um espacinho aqui? Joga isso pra lá...crrarck... levanta essa porta aqui...traarff...ufa! 

-Podes me contar o que estás a fazer? Palavreando sem parar. 

-Um espacinho para nossa fogueirinha. Agora é só encontrar alguma coisa para assar e mastigar. 

-Bota, olha bem, estás a se movimentar  mas tudo está como antes. Você não mudou nada de lugar  nesse buraco. E eu não sinto fome, nem nada. 

-É mesmo, parece um vazio. Eu também não tenho fome. Então acosta aí do teu lado e vamos prosear, mano, mastigar o tempo, enquanto não vem alguem nos tirar daqui.

- Eu tenho  uma coisa que preciso te contar sim, Bota. Deve ser por conta dessa situação sem solução que estamos a sofrer aqui, tu e eu nesse buraco. Estou aqui a pensar que talvez seja esta a melhor hora, tem muitos dias que estou a pensar e pensar em ti contar, tu és meu melhor amigo, não tem nada mais sagrado que nossa amizade, não é mesmo? Acho que essa...

 – Podes parar com esse lenga lenga e fala logo, camarada! Estou a te escutar.

- Trata-se de uma circunstância delicada, mano, aconteceu sem segundas intenções, eu e dona Zolinda, assim sem pensamento, mas com todo respeito, porque é tua dona, a dona do meu melhor amigo e eu...

- Desembucha, Matunha!

- Tu estavas noutro sítio, a viajar e ela estava assim... necessitada, entendes? Eu sou teu amigo, então só cumpri minha obrigação de amigo e foi rapidinho. Só uma vezinha de nada.

- Tu folgueou com minha dona, então. Se foi por uma necessidade eu entendo, mano. Estás a te preocupar atoa.  Isso também aconteceu comigo uma vez.

- Mano, que alívio! Sabes que sou teu melhor amigo.

 -E amigo é pra essas coisas mesmo. Sabe aquele domingo que fostes no Chimoio vender a TV que pegamos na casa do prefeito?

- Sim, o que houve?

- Tua irmã estava de passagem aqui na cidade, coitada, estava sozinha, muito necessitada...

- O que estas a dizer? Tivestes coragem de folguear com minha irmã? Vais levar txaia, seu desgraçado! Eu te mato! Vou arrancar teu coração e picar ele todinho! Vou comer ele assado nessa fogueirinha, seu....

- Para com essa gritaria, mano. Tu não vai fazer nada porque aqui não dá nem para esticar o braço, muito menos me matar. Deixa de lero lero. Então és meu melhor amigo ou não?

- Como foi acontecer uma coisa desavisada dessa? Tu não podias ter feito isso!

- Esquece isso, engole essa raiva e acosta aí no teu canto.  
         
Eu quero é sair daqui, Bota, quero ver o sol da Beira de novo. Gostava de trabalhar na minha machamba, sentir o cheiro do mato, mastigar uns cabritos, folgazar com as raparigas na praia. Até que tu apareceste me atentando para a vida de larápio, vida desassossegada e fugitiva.

- Vida muito emocionante, isso sim, mano! Não gostas de money? De comprar umas sapatilhas novas, uns jeans bonitos pra impressionar as raparigas, comer um frango zambeziano com piri-piri na beira da praia. Nós só corremos atrás das coisas boas da vida! Nunca gostastes mesmo de jobar. 

- Nós corremos foi pra trás das grades, duas vezes! E quase nos enchavearam de novo dessa vez. E nem conseguioms vender ainda esse ouro que roubamos aquele dia.

- Tu sabes há quanto tempo estamos aqui de gatas nesse buraco? Estou a perceber claridade la fora. Já deve ser a hora do  mata-bicho.

- Sei não, a gente perde a noção de tempo aqui dentro. Não tem fome, nem frio, nem dor nenhuma. E olha que esse teto caiu em cima da gente. Ainda estou achando muito estranho. 

- Matunha, estou a escutar barulho, te atenta! Vieram nos salvar.

- Estás a ouvir demasiado, mano. É só um silencio que me deixar surdo.

- Fica bem quietinho. É uma voz a chamar a gente. Chegou nossa hora! Daqui nos desacomodamos agorinha.  Vejo até uma luzinha lá no fim desse túnel. 

- Que túnel? Não, Bota! Não entra aí, não!

- Vamos os dois juntos. Preparado, homem? Só num pode ser a guarda, aí tamo frito!

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- Força, pessoal! Desanimação não vai ajudar, não. Levanta esse muro maior aí. Pode ter alguém embaixo. Emércio, mais corda, mano!

- Boss, mais de 10 dias já são idos desde o ciclone. Não pensas que já estava bem na horinha dessa busca parar? Já abrimos caminho para mais de 500 esperantes debaixo desse lodo e aguaceiro. Todos defuntos há muito.

- Não sou eu que dou a palavra final. Eles mandaram e é o que nós estamos a fazer. Tu pensas que já não estou cansado de desencavar dez, vinte, centenas desses pobres coitados? Estamos a tirar gente debaixo desses escombros, só para serem postos correndinho debaixo da terra, nos tintins, com flores e velas. Nisso não mando eu. Se assim fosse deixava sossegados esses. Vamos aí, força!

- Boss, estamos a conseguir aqui, abrimos um dos lados. Olha só! Mais dois para encher o purgatório, esticados e mortinhos, pelo jeito desde o dia do ciclone. Mas veja só essa caixa de madeira, boss, tá cheinha de ouro!!


Novo ciclone atinge Moçambique um mês após catástrofe que matou ...

 15 de Março de 2019, o ciclone Idai atingiu a costa de Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, matando mais de 600 pessoas. Precisamente Beira, cidade onde trabalhei por um ano e fiz muitos amigos,  foi o local mais atingido. 90% da cidade foi praticamente destruída. Ventos de mais de 170km/h arrasaram casas e provocaram alagamentos. Os 500.000 habitantes ficaram sem água e energia elétrica por semanas e milhares de pessoas ficaram desabrigadas. Epidemias de cólera e malária se sucederam ao ciclone. Um ano depois, a cidade ainda não havia se recuperado do trauma emocional nem dos danos materiais. 

Tchopela= Veiculo de 3 rodas a motor, aberto. Tipo tuc-tuc usado na India.
Matope= Lodo, barro.
Chima= Comida típica feita de farinha.
Tchaia= Porrada.
Machamba= Plantação
Jobar= Trabalhar(job)
Mata-bicho= Café da manhã




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