A tentação

- Ela esteve aqui ontem.

- Espero que você não a tenha deixado entrar.

- Ela foi muito persuasiva, não tive como impedir.

- Não! Eu te disse para ter cuidado, Branca! Ela é assim, ninguém consegue resistir. Uma vez que você caia nas suas redes, acabou, eu te avisei. Ela descobre os pensamentos da gente, os desejos mais escusos e proibidos. E atinge exatamente o nosso ponto fraco. Quando você vê, está enredado, paralisado.  Somos todos humanos, mesmo você!

- Eu tentei resistir, tranquei a porta e as janelas, dei-lhe as costas, coloquei os fones de ouvido para não escutar o que ela falava. Mesmo assim, no final da tarde, quando achei que ela havia ido embora, escutei os passos dela lá fora, rodeando a cabana. Eu ouvia a brisa e o farfalhar das folhas nas árvores enquanto ela cantava baixinho. Uma canção de ninar.  Parecia tão inocente, tão maternal. Vestia sua túnica púrpura e levava uma cesta de vime nos braços e de lá saiam frutos, flores, pães e bolos. Um odor de infância e proteção entrou pela casa. Eu me senti criança de novo, capaz de alcançar tudo que eu queria, capaz de conquistar todo o mundo.

- Não! Isso é uma ilusão, te avisei.

- Mas parecia real. Por mais de uma hora, eu acompanhei calada seus passos em volta da casa, rezando para que fosse embora. Sabia que a qualquer momento eu poderia sucumbir à tentação e abrir a porta para que entrasse. E se isso acontecesse, seria meu fim. Resisti. Fechei os olhos e comecei a pensar em coisas boas. Apertei o fone nos meus ouvidos e liguei o som no máximo.

- Lutar assim contra ela pouco adianta, você sabe. É isso que a fortalece, ela respira nosso medo, se alimenta dos nossos desejos e distorce nossos pensamentos. Basta uma pequena fresta, um crack na nossa consciência, um momento de dúvida.

- Percebi. Mas quanto mais eu evitava, mais a sentia presente. Era como se os círculos que ela fazia do lado de fora fossem se apertando em volta de mim e seu canto parecia mais alto que a música no meu fone. Tinha a sensação de estar sufocando.

- Meu Deus!

- Escureceu e eu ainda não sabia o que fazer. Quanto mais a noite chegava lá fora, mais estranho era seu canto. A canção de ninar se transformou numa melodia repetida e desafiadora como o canto de sereia. Era como se ela invocasse os seres da noite. Comecei a entrar em pânico, meu coração disparava intermitente, o ar parecia que não entrava nos meus pulmões por mais que eu inspirasse, minhas mãos tremiam. Não havia ninguém para me socorrer, nenhuma comunicação nessa cabana no fim do mundo.

- Desculpe, Branca.  Eu deveria ter ficado aqui com você. Sabia que isso podia acontecer, ela viria atrás de você. Mas o que aconteceu depois?

-  Ela começou a se movimentar muito rápido e a cantar mais alto. Bateu na porta, eu caminhei como um zumbi até ela e a abri sem pensar. Quando a vi senti uma tontura forte, quase caí. Mas ela me aparou com a sua mão direita e olhou dentro dos meus olhos como se conhecesse todos meus pensamentos. Com a mão esquerda, ela pegou alguma coisa na cesta de vime e me deu. “Quer uma maçã, minha querida Branca?” Era a maçã mais linda e vermelha que eu havia visto.

- E aí? O que você fez? Pelo amor de Deus, não me diga que você mordeu a maçã!

- Não, ela está aqui. Você quer, Felix?

 

 

 

                                                                                               *Deixe seu comentário na página

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Espinheira Santa

“Histórias quase, quase, quase, quase comuns.” - Resenha

"Existe vida antes do primeiro livro" - Resenha