Segredos do Caminho de Santiago- 6ª parte - Fim de viagem e o retorno ao Brasil



Cheguei ao local onde pegaria minha compostela ainda pensando no peregrino alemão e tive a surpresa de encontrar Celinha e Andreia na mesa
do escritório, conversando com um funcionário que estava entregando a elas as compostelas.  Naquela hora, abracei as duas com força e elas ficaram felizes em me ver, e eu também. Fizeram mil perguntas: por onde eu passei, como saí do Cebreiro naquele dia de vendaval, como eu estava, etc... Saímos dali as três muito felizes com nossas compostelas: uma concha com o símbolo do Caminho e um documento que nós assinamos, escrito em latim. Aquele era o nosso tesouro, que representava cada passo na trilha.  Passamos aquele dia rodando pelas ruas de Santiago repletas de peregrinos.  No dia seguinte embarcaríamos para o Brasil.
                                                                                                             
  O voo
 À noite do dia seguinte estávamos no aeroporto de Barajas em Madri. Esperávamos o embarque para o Rio num voo lotado de brasileiros. O português era a língua oficial no portão de embarque, poucos falavam espanhol. Nós estávamos cansadas e muito felizes. Felizes pelos dias fantásticos no Caminho e pelo retorno ao Brasil. Eu me sentia como se tivesse passado um ano fora de casa. É impressionante como me desliguei de casa à medida que percorria o Caminho. Vejo hoje as pessoas fazendo o Caminho de Santiago, tudo registrado em cada minuto com vídeos e fotos dos celulares e mil “selfs”. Sim, pode ser muito bom ter o registro de tudo e compartilhar com as pessoas no Brasil, mas a que preço? Um preço que eu não gostaria de pagar. De estar mais no lado externo de você mesmo e de deixar de viver intimamente as experiências para compartilhar ao vivo e se preocupar com o olhar do outro.  Para compartilhar é preciso primeiro viver profundamente, é preciso ter realmente o que compartilhar. 
Era de madrugada quando embarcamos no voo já com o pensamento no Brasil. Uma hora depois da decolagem a voz do piloto nos alertou: - “Caros passageiros, por favor, apertem os cintos, temos uma emergência, um problema no trem de pouso, vamos ter que retornar a Madri.” Comecei a ver as pessoas olhando pelas janelas do avião, tentando ver se havia alguma coisa errada lá fora. As comissárias de bordo começaram a caminhar pelos corredores pedindo a todos que apertassem os cintos. Alguns passageiros se apressaram a voltar para seus assentos com cara de preocupados.  Eu continuei a ler meu livro, mas já com dificuldade para me concentrar, quando cinco minutos depois o piloto de novo: - “Senhores passageiros, estamos retornando. Vamos ter que soltar todo o combustível das asas para aterrissar em segurança.” Agora sim todo mundo no voo ficou realmente muito nervoso e alguns não conseguiam ficar sentados. Pelas janelas começamos a ver o combustível jorrando das asas. Uma fagulha seria o suficiente para estourar tudo! Algumas pessoas pegaram suas bíblias e começaram a ler alto, deixando a maioria ainda mais tensa. Eu só olhava em volta já pensando o que faria se alguém passasse mal ali. Um senhor que já havia tomado algumas garrafinhas de vinho (e sabe-se lá quantas antes de embarcar!) levantou meio cambaleando e gritou com a voz arrastada e com um forte sotaque português:  - “ Eu sabia! Sabia que ia morrer de acidente de avião! Ai, aí, meu Deus! Inda bem que não trouxe o Santinho, meu gato!
Por uns cinco minutos foi um alvoroço geral até que as comissárias conseguiram ir acalmando os mais aflitos fazendo com que todos sentassem nos seus lugares. A gasolina continuava jorrando pelas asas, alguns passageiros continuaram lendo suas bíblias em voz alta e o português foi levado para a primeira classe onde deve ter continuado a tomar seu vinho. Pousamos em Madri finalmente, e nos foi comunicado que teríamos que aguardar os reparos para continuar viagem na mesma aeronave. Alguns já disseram que não entrariam no mesmo avião de jeito nenhum. Nós esperamos. Quatro horas depois embarcamos de novo, para chegar sãos e salvos no Galeão no dia seguinte.

Os primeiros dias no Brasil:
É sempre difícil retornar de uma longa viagem. Principalmente quando se tem pela frente um processo de divórcio. Principalmente quando se estava vindo de mais de 30 dias caminhando. Meu coração estava em pedaços, e meu corpo pedia para caminhar. Nos primeiros dias saía cedo de casa, ainda com as minhas botas do Caminho, e pegava algum rumo. Muitas vezes ia caminhando e chorando, pensando como seria viver dali para frente. Só o que me dava força era pensar nos meus filhos. Por eles eu sabia que faria o meu melhor.  Certo dia, numa dessas caminhadas, parei em uma padaria e pedi água. Eu estava chorando quando saí e a moça do caixa me disse uma simples frase que eu nunca mais esqueceria: “Não fica assim, a vida não é fácil para ninguém.” Nunca mais a vi e com certeza ela não imagina como foi importante o que falou. Num momento em que eu estava precisando tanto de um consolo,  ele veio de uma total estranha. 
O caminho de Santiago, que eu fiz há quase 20 anos atrás, permaneceu comigo todos esses anos. Eu saí dele, mas ele não saiu de mim!  Ele me dá força para recomeçar sempre, mostrando meus limites e minhas impensáveis possibilidades, mostrando a importância de se ter um objetivo, de se saber aonde se quer chegar e me lembrando de como é importante confiar no que a vida nos coloca em cada curva do caminho.


FIM

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