Minhas duas faces - 3ª - A paralisia de Bell
A paralisia de Bell.
De
frente para uma grande tela de computador, minha colega radiologista me explicou
o que estava mostrando o exame.
- “ Rachel, aqui está o nervo facial, está vendo
essa linhazinha branca aqui? Pois é, isso significa que ele está edemaciado, inchado,
mais espessado do que deveria. É uma paralisia de Bell mesmo. Não tem sinal de
nenhum tumor aqui. Você teve alguma virose nos últimos dias? “
- “Não, não que eu me lembre, não tive nenhum
sintoma, nenhuma gripe, e nunca tive herpes. “
-“ Alguma mudança brusca de temperatura
então? ”
- “As
mudanças habituais, Marilia. Entra em ar condicionado, sai de ar condicionado. Mas
isso eu sempre fiz, não acho que deva ser a razão da paralisia..., não fiz nada
de diferente! ”
- “ Então sobra o stress, Rachel. Em muitos
casos é a causa presumida da paralisia de Bell. E o stress baixa a imunidade. Sabe
que é comum chegarem noivas aqui com paralisia facial? Pouco tempo antes do casamento. E executivos
jovens também. Você anda trabalhando demais desde que voltou a dar plantão, não
é? ”
- “É verdade. Pode ser Marilia. Esses últimos meses não
foram fáceis. ” Admiti meio cabisbaixa, quase cedendo aquela tentação de
auto piedade, que eu imediatamente sacudi de mim, assim como um cachorro se
sacode quando sai da agua, respingando para todo lado.
Prolongadas
jornadas de trabalho, stress, separações, mudanças de vida. São coisas que muitas vezes achamos estar
sobre controle, mas nosso corpo acha diferente. Mas não sentia vontade de
compartilhar os meus problemas com ela, não éramos amigas tão intimas assim. Além do mais, já bastava a paralisia para
ocupar minha mente naquela hora.
Agradeci
ao pessoal do setor de radiologia e voltei para minha casa um pouco mais
tranquila do que quando saí, mas ainda muito tensa por estar vendo aquilo
acontecer sem que houvesse nada a ser feito para interromper o processo. Os
medicamentos que comecei a tomar logo no primeiro dia talvez diminuíssem um
pouco o acometimento do nervo facial, mas eram só promessas, que no meu caso,
não se concretizaram. Ainda nos dois ou três dias seguintes vi a paralisia se
tornar mais e mais grave, até que se estabilizou.
A
paralisia de Bell acontece quando o nervo facial sofre um “trauma”, geralmente
um processo inflamatório causado por um vírus. Existem muitos casos relatados
também por choque de temperatura. Seu nome no século XIX era paralisia “a frigore”, mostrando sua relação com o
frio, principalmente com diferenças bruscas de temperatura. O nervo sai do seu
trajeto no interior do crânio pelo conduto auditivo, passa pela glândula
parótida e enerva os principais músculos da face. É responsável também pelo
paladar em parte da língua. E é na passagem pelo estreito canal auditivo que
ele geralmente está sujeito a sofrer maiores danos, porque ele inflama, e não
tem para onde expandir, sofrendo compressão no seu tronco principal. Nas formas mais graves todos seus ramos são afetados
deixando os músculos inertes, sem vida.
Como
meu olho direito não fechava, além do tampão a noite, comecei a usar uma
pequena bandagem ao lado do olho, na tentativa de proteger do vento, que
incomodava terrivelmente. As lágrimas desciam involuntariamente, o que os
livros médicos sutilmente chamam de “lágrimas de jacaré”. Demorei um pouco para
entender porque “lágrimas de jacaré”, até que vi um vídeo sobre esses grandes
répteis e percebi que eles realmente soltam lágrimas pelo centro da pálpebra
inferior, não pelo canto do olho, exatamente como estava acontecendo comigo. Todo
o lado direito do meu rosto estava totalmente paralisado. A voz soava estranha,
já que o som estava saindo mais por um lado do que pelo outro. Comer também
estava complicado, o lado direito da boca não ajudava. Apesar da mastigação ser
normal, a comida que caia entre os dentes e o lábio inferior direito ali
ficava, até que eu ajudasse com as mãos pelo lado de fora da boca.
Nos
primeiros dias comecei a fazer acupuntura e fisioterapia, o que se transformou
numa rotina pelos meses seguintes. Comecei
a fazer exercícios de fisioterapia também em casa, em frente ao espelho, que
passou a ser meu maior inimigo, porque todo dia ele me mostrava a minha própria
desarmonia.
Apesar
disso, continuei trabalhando, mas num ritmo menos intenso. Trabalhar sempre foi
para mim uma forma de esquecer meus problemas pessoais, e tratar dos problemas
dos outros. Só que desta vez, meu mal estava na cara, na minha cara. Não dava
para esconder de ninguém, estava totalmente exposta, para quem tivesse olhos
para ver: colegas, funcionários, pacientes, familiares. Muitos deles cheios de curiosidade. E as perguntas
vinham aos borbotões: “ Nossa, está
incomodando muito? -“ Está difícil para dormir? ” –“ Será que foi uma virose? ” Poucos mais discretos não faziam perguntas,
polidamente. E muitos fingiam não perceber, na ideia de que isso fosse o melhor
para não causar constrangimento. Na verdade, essa foi a pior das reações.
Naquelas
semanas seguintes duas coisas ficaram muito claras para mim, no que diz
respeito as pessoas do meu convívio. Uma
é que algumas pessoas mais próximas realmente foram profundamente tocadas de
alguma forma pelo que aconteceu comigo, como se também elas tivessem sido
brutalmente surpreendidas. Outras pessoas só se mostraram muito curiosas e
faziam perguntas mil. Mas a maioria das pessoas mal se importavam, se meu rosto
estava torto ou se eu estava falando de um jeito estranho, se eu estava mais
bonita ou mais feia, que importância tinha isso? Porque mal me viam! Nós temos
o hábito de Narciso, de achar que é muito importante estarmos assim ou assado,
com essa ou aquela roupa. De uma forma que sempre nos achamos lindos. Mas não é
assim que as pessoas nos veem, se é que elas realmente te olham. Somos pessoas
comuns, muito comuns, como outros 7 bilhões de pessoas no mundo. A menos que
você seja alguém que chama atenção por uma beleza extraordinária, fora da
curva, geralmente é preciso olhar fundo nos olhos para ver o que de especial
cada um de nós tem. E para isso, pouca gente tem tempo e disposição nos dias de
hoje. Todos estamos muito ocupados em nos olharmos no espelho. Assim como eu, a
partir daqueles dias!
Por
sorte minha, estava com uma viagem marcada para o Canadá, para onde minha filha
havia se mudado há alguns meses. Cheguei em pleno inverno e lá eu fiquei por 3
meses literalmente hibernando, curtindo minha neta, sem precisar conversar ou
cumprir obrigações sociais, longe dos olhares das pessoas, longe de
compromissos e stress. Isso ajudou a curar minha alma, mas não o meu rosto.
Além
de olhar no espelho por longos 30 minutos, fazendo exercícios de fisioterapia
duas vezes ao dia, eu comecei também a olhar para trás no tempo, buscando
repostas para o que estava acontecendo. Que razões, quais os motivos, como
aquilo aconteceu? Não procurava causas científicas, mas tentava entender as
circunstancias anteriores que pudessem ter levado meu organismo a reagir
daquela forma. Sempre acreditei que toda doença física tem seu início em um outro
nível energético. E alguns acontecimentos recentes começaram a voltar na minha
lembrança.
Estou acompanhando e gostando muito do seu blog. Relatos humanos bem escritos, muito bem escritos, muito bonito e sensível, cada linha. Muito obrigado por compartilhar essas experiências. Parabéns pela iniciativa e pela produção.
ResponderExcluirPrimo querido, quero ser escritora como você! Estou treinando!
ResponderExcluirSeu depoimento destes momentos tão difíceis me faz pensar em como a gente se distancia das pessoas que amamos! Mesmo estando tão perto você viveu tudo isso longe de mim, e eu também não me esforcei para estar ao seu lado... nossa viagem em setembro tem uma razão de ser! Beijo grande no coração!
ResponderExcluirNos todos passamos por momentos difíceis. Mas saber que temos a família por perto, já dá força! Bj
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