Minhas duas faces- 7ª- O plantão

  7 ª parte-

No dia anterior - o plantão
De todos os capítulos, este foi o mais adiado desde quando comecei a escrever essa crônica há meses atrás, o mais doloroso. Tenho muitos anos de prática de medicina, o suficiente para saber que nunca sabemos tudo, que sempre aparecem situações totalmente imprevisíveis e inusitadas, das mais simples às mais complexas. Talvez esse seja o grande mistério da medicina e o grande atrativo para aqueles que estão dispostos a exercê-la com paixão. Mas mesmo sabendo disso tudo, cada momento é novo e desafiador, cada paciente é único e cada fracasso  tem sua dor inevitável.
Ele estava lá, um jovem de vinte e poucos anos, sob minha responsabilidade, e eu o perdi. O plantão foi bem difícil na sala de emergência aquele dia, o mais difícil. Ele chegou no meio do dia com insuficiência respiratória. Usava chinelo de dedo, calça jeans e camiseta meio rasgada.  Um jovem de classe baixa, como a maioria das pessoas que chega naquele serviço de saúde. Respirava com um pouco de dificuldade e no primeiro exame eu percebi que se tratava de uma condição antiga. A própria família relatava algumas internações anteriores. Colocamos no oxigênio e medicamos, mas enquanto esperava os resultados dos exames, ele teve uma piora e começamos o procedimento de intubação. Nesse meio tempo ele “parou”. Uma parada cardiorrespiratória é sempre a situação mais dramática na emergência de qualquer hospital, principalmente quando o paciente é jovem.
- “ Vamos intubar, preparem a medicação, me dá o tubo! Adrenalina, comecem a massagem cardíaca! ”   Uma, duas, três tentativas, e o tubo não avançava pela traqueia, alguma coisa estava obstruindo.
“ Chamem outro clínico e o cirurgião, rápido! ” Falei para uma turma de enfermeiros e técnicos meio atabalhoados. “ Não parem a massagem! Voltem com o ambu! Adrenalina de 3 em 3 minutos! ”
Em menos de um minuto chegaram meus colegas de plantão. Os dois tentaram também a intubação, sem sucesso. Havia mesmo uma obstrução na traqueia. O cirurgião tentou a cricotireoidostomia (procedimento onde se insere uma agulha na traqueia) e não conseguiu, até que se preparou para a traqueostomia.  Difícil, a cânula não passava apesar da incisão. O clima ficava mais tenso na sala de emergência. Até que finalmente a cânula entrou na traqueia.  O paciente foi ventilado, massageado, medicado por mais de 40 minutos. Tentamos de tudo, mas apesar de todas as manobras não tivemos sucesso.
Essa é a hora em que o médico abaixa a cabeça e percebe claramente que não é deus. Quando ocorre com idosos já com doenças crônicas e debilitados: ... “é a vida, isso acontece”. Mas com jovens, ...“ eu devia ter feito alguma outra coisa...”
Aquela noite, saí do plantão arrasada. Voltei para casa dirigindo e chorando, meu nível de stress e tristeza estava lá no alto, minha autoestima lá no fundo, e as lágrimas rolavam sem controle. Diferentemente do meu normal, naquele dia eu havia perdido o controle das minhas emoções.  E quando isso acontece nos tornamos perigosamente vulneráveis a qualquer tipo de coisa.  No dia seguinte pela manhã eu comecei a sentir os sintomas da paralisia facial e para mim estava clara a relação com o plantão do dia anterior, aos poucos foi ficando clara também a relação com todo o ano anterior e com o sonho 15 dias antes.
Mais uma vez percebi que esse tempo cronológico que nós vivemos é uma ilusão, porque nosso inconsciente, ou do que queiram chamar, sabe exatamente o que nós estamos “cozinhando” para nosso futuro.  Vamos tecendo cada experiência da nossa vida, como uma aranha tece sua própria teia: com sua própria substância e com um propósito definido. Propósito ignorado pelo pequeno “eu”, mas bem claro para nossa essência verdadeira.

Com tudo isso, em poucos meses aprendi algumas coisas importantes, entre elas... 

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