Minhas duas faces- 5ª - Um mês antes

                               5ª parte
      Um mês antes
- “Boa tarde, meu nome é Patrícia e vou fazer a entrevista por telefone com você. Dura aproximadamente 1 hora e parte do tempo será em inglês, tudo bem?”
- “Sim, claro. Podemos conversar quando quiser.”
-“ Para começar, sempre gostamos de abordar nossos princípios fundamentais: independência, imparcialidade, neutralidade. Independência significa que não estamos atrelados a poderes políticos, militares ou econômicos; a maior parte absoluta dos nossos recursos vem de doações. Imparcialidade porque oferecemos ajuda aqueles que precisam, sem discriminação de raça, religião, nacionalidade ou convicção política. Neutralidade o que significa que não tomamos partido, seja qual for o conflito ou as partes afetadas.
- “Sim, já me informei bastante sobre esses princípios e sobre algumas questões organizacionais também.”
-“Estou vendo no seu currículo que você tem experiência com doenças infectocontagiosas.”
- “Tenho experiência com Aids e tuberculose. Trabalhei na gestão do programa de Aids no Ministério da Saúde, e tenho alguma prática clínica. Essa é uma área que me interessaria muito em trabalhar também, principalmente na África”.
- “Certo. E como você lida com stress no trabalho? E o trabalho em equipe, tem alguma restrição? ”
- “Não, de forma nenhuma. Gosto de trabalhar em equipe, de me sentir parte de uma engrenagem, principalmente quando é bem organizada. Em geral as situações de stress não perturbam o meu foco no trabalho”.
-“ Você deve saber que Médicos sem Fronteiras está precisando sempre de médicos para atendimento de emergências e politraumatizados.  Estou vendo aqui no seu currículo que você tem experiência em Sala de Emergência. E com trauma?
-“Bom, como não sou cirurgiã, realmente não tenho nenhuma experiência com poli traumatizados. Fiz recentemente a atualização para atendimento em emergências clínicas, mas nunca fiz para atendimento ao trauma.”
-“Certo, Rachel. Bom, seu currículo foi enviado para a França assim que você nos enviou por email. As entrevistas pessoais são realizadas às quintas feiras aqui no Rio. Podemos marcar quando for melhor para você. Vamos precisar que você faça o treinamento para atendimento a politraumatizados para completar seu currículo. Mas antes de terminar, só mais uma pergunta. Estamos precisando com urgência de médicos em zonas de guerra. Você estaria disponível para ir trabalhar no Afeganistão ou Iêmen? ”

Ops... Engoli em seco, e assim terminou a entrevista com a funcionária do escritório de MSF no Rio. Minha resposta à pergunta? Adiei para o dia da entrevista pessoal.  Poucos dias depois vejo na televisão os ataques ao hospital de MSF no Afeganistão, com a morte de dezenas de funcionários, enfermeiros, médicos e pacientes, e outros tantos feridos. Estava chocada!
Há alguns anos vinha me preparando para, no momento certo, me juntar aos Médicos sem Fronteira. Muitas escolhas e decisões nos últimos 10 anos da minha vida foram acontecendo tendo como essa a meta maior. Entre elas, anos trabalhando em gestão de programas de saúde para atendimento aos pacientes HIV positivos, as constantes e rotineiras aulas de inglês, o retorno à Clínica Médica, a pós-graduação em Urgência e Emergência e os plantões. Mas trabalhar em uma zona de guerra, eu daria conta? Essa questão ficou na minha cabeça pelos dias seguintes, um conflito interior, um vai não vai, um sirvo ou não sirvo para isso. Ali fiquei paralisada! Havia algumas dezenas de boas razões para eu não me juntar aos MSF, as principais: minha família, meus netos, meu conforto pessoal, minha segurança física, minha estabilidade financeira, e por aí vai.  E apenas uma para eu empreender essa jornada: o sonho de fazer algo maior em prol da humanidade. E essa “uma” nem sempre estava forte e clara na minha mente naqueles dias.

No meio desse conflito interno eu tive um sonho. Um sonho que veio para me avisar o que aconteceria duas semanas depois: a paralisia facial.

Comentários

  1. Gostei muito, gosto muito dos seus textos. Admiro muito você como pessoa, como profissional da Saúde, e agora também como escritora. Esse seu texto veio confirmar uma coisa muito séria que penso, e tenho certeza que posso compartilhar com você, mesmo 'aqui' de forma assim 'pública'. Vamos lá: Confesso que tenho uma certa resistência e porque não dizer um certo pré-conceito (sim, é preconceito, eu sei) com médicos e, embora existam os médicos que eu admire e ame, muitos parentes até, faço esse comentário de modo generalista, sim. Tenho uma certa resistência com médicos, com os profissionais e instituições do mundo da saúde em geral. Nada pessoal, mas detesto a mentalidade e o pretenso ar 'superior' de quem salva vidas e por isso se acha "acima do Bem e do Mal". Ok, calma, vamos continuar. Essa suposta 'qualidade' geralmente acaba sendo (por muitos muitos colegas seus, sim, infelizmente) associada a arrogância, a petulância, a falsa-superioridade, defeito que eu mais detesto nos outros. OK vamos continuar. Contribuem para meu pensamento fatos por exemplo como os estudantes de Medicina que postaram aquela foto absurda e misógina de poucos dias atrás nas redes sociais e, há tempos atrás, alguns colegas seus dizendo coisas patéticas sobre "Médicos Cubanos" também nas redes sociais. Ok. Vamos ao final: Médicos Sem Fronteiras (entre outras instituições do Mundo da Saúde) são "tão" importantes "tão" acima do Bem e do Mal e se acham "tão" perfeitos úteis e infalíveis que... FALHARAM, no seu caso e em muitos outros, suponho. Ora, essa idiota que te entrevistou, por culpa dela e de quem a treinou, PERDEU a excepcional contribuição que você poderia ter dado à Mãe África por exemplo. Ora, ter ou não ter coragem de ir para zona de guerra NÃO PODE ser eliminatório numa seleção assim. É simples: eles têm que aproveitar o potencial e a disposição do profissional competente e altruísta, e, depois, somente depois da seleção, destiná-los ao Afeganistão OU à África OU aqui OU ali... eles deveriam ter um pouco mais de humildade para não desperdiçar, deixar "perder" profissionais e seres humanos da sua qualidade! Isso deve acontecer com muitos"! Conheço poucos ou NENHUMA pessoa como você! As pessoas que você poderia ter atendido na África ou sei lá onde, te perderam por culpa da arrogância do MSF. Que pena, tanta gente precisando de ajuda no mundo e a arrogância das instituições do mundo da Saúde deixando desperdiçar a ajuda que poderiam receber............................

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    1. Querido primo! Não me super estime tanto!!! rsrsrs... Sou comum...demasiadamente comum..( como diria Nietzsche! kkkk...). Não fui eliminada ainda, semana que vem faço a última etapa do processo, que atrasou um pouco por causa da paralisia. Grande possibilidade de estar na Africa ate o fim do ano. Uau! Mas você tem razão, médicos arrogantes e prepotentes é o que mais existe!! Beijo grande!!
      PS: Você tá me forçando a contar parte do final da estória!!rsrsrsr

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  2. Vou te visitar na África, assim como fui em Santa Fé de Minas.

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