Segredos do Caminho de Santiago 1ª parte- Jesus Jato
O Monastério de Samos |
Jesus Jato.
Aquele
estranho homem, meio bruxo, meio camponês, massageava meus joelhos com algumas
ervas que exalavam um cheiro misterioso. Meus joelhos estavam inchados e muito
doloridos, mas foram aos poucos relaxando enquanto ele balbuciava algumas
palavras em um espanhol carregado, difícil de entender. Só sei que eu estava me
sentindo melhor naquela espécie de maca no meio de um alojamento em um dos dias
mais difíceis do Caminho, até que o homem começou a falar sobre mim, como se me
conhecesse há muito tempo.
Eu, Juan e duas peregrinas |
O
nome dele era Jesus Árias Jato, tinha a pele morena e marcada de sol, devia ter mais 60
anos. Tinha os cabelos grisalhos e bigode mal aparado. Vestia calças jeans largas
e surradas, uma blusa de lã colorida. As botas de cano curto estavam sujas de
terra. Ele era o dono do alojamento. Ali recebia os peregrinos do Caminho de
Santiago e cuidava de algumas cabras. Era muito respeitado por vizinhos e
caminhantes e boatos corriam sobre seus dons de curar e ler a mente das
pessoas.
Eu e
minhas duas amigas havíamos chegado a Villafranca del Bierzo na noite anterior e
fomos diretamente para o alojamento, muito cansadas depois de
subir parte daquela montanha por uma trilha no meio da mata fechada. Desde o segundo dia de jornada meus joelhos “gritavam”.
Muito inflamados, como se eles tivessem consciência da minha própria dor. Eu
tinha chegado ali depois de mais de 20 dias de caminhada graças ao Voltarem que
Andreia havia trazido na mochila e muita bolsa de gelo. Caminhávamos uma média
de 24 quilômetros todos os dias para poder percorrer os 790 quilômetros, de
Roncesvalles a Santiago de Compostela, em pouco mais de 30 dias. Muitas vezes
caminhando e chorando de dor, afinal, era impossível voltar ou ficar parada no
caminho.
Eu e Andreia |
Diferente
dos outros albergues, aquele era bem grande, ficava numa encosta cercado de
mata e com uma vista incrível da montanha. Da porta de entrada podíamos ver
tanto a parte da trilha que havíamos percorrido para chegar até ali, quanto o
pico da montanha e o difícil e íngreme caminho que teríamos que percorrer no
dia seguinte. Quando
chegamos, a mulher de Jesus estava na cozinha mexendo uma enorme panela de
barro de onde saia um cheiro maravilhoso
de algum tipo de ensopado com muito alho e cebola.
As chegadas aos albergues eram sempre aconchegantes e festivas. Peregrinos de todos os lugares do mundo se encontrando para conversar, tomar vinho e jantar. Depois de bolsas de gelo e pernas para cima meus joelhos sempre estavam melhor, prontos para a próxima etapa. Mas no final daquele dia foi diferente, eu mal podia dar um passo.
As chegadas aos albergues eram sempre aconchegantes e festivas. Peregrinos de todos os lugares do mundo se encontrando para conversar, tomar vinho e jantar. Depois de bolsas de gelo e pernas para cima meus joelhos sempre estavam melhor, prontos para a próxima etapa. Mas no final daquele dia foi diferente, eu mal podia dar um passo.
Andreia
e Celinha foram se juntar aos outros peregrinos em uma grande mesa de madeira no centro do refeitório. Mas naquela noite eu não estava a fim de conversa ou vinho. Aceitei um prato com
ensopado e pão, sentei numa cadeira meio afastada e pedi uma bolsa de gelo. Assim que terminei de comer percebi Jesus em
pé do meu lado. Um estranho com um estranho convite: - “Hola señorita, usted tiene las rodillas mui hinchadas, que tal uma
massaje? Tengo unas ervas especiales e
mui poderosas...”
Não
prestei muita atenção no inicio, mas depois ele continuou falando comigo num
tom de voz meio hipnótico: - “ Muchas
veces, cuando sentimos una dolor profunda nel corazon nuestras rodillas sufrem
tambien.”
Assim
ele me convenceu. Deixei a bolsa de gelo e o segui mancando até a grande tenda de piso
de terra batida. Dentro da tenda havia duas macas com lenções brancos e limpos,
uma mesa velha de madeira escura com duas cadeiras de acampamento, uma pequena estante
cheia de vidros com ervas e um grande caldeirão de ferro com água fervendo
sobre um enorme fogareiro. Além desse
fogareiro, só uma lâmpada fraca e amarelada na parede próximo a entrada
iluminavam a grande tenda. Ele pediu que eu levantasse as pernas da minha calça
de trilha expondo os joelhos e deitasse na maca. Meio desconfiada, eu deitei de
frente e comecei a escuta-lo mexendo nos vidros de ervas e na água fervendo no
caldeirão. O cheiro das ervas era forte, e se misturava com o delicioso cheiro
de óleo de amêndoa. Fora da tenda só se ouvia ao longe a animada conversa dos
peregrinos.
Jesus começou a massagem nos meus joelhos e, para minha surpresa, começou a falar de
mim e do que eu havia passado nos últimos meses no Brasil, como se me
conhecesse ha muito tempo. Falou do fim do meu casamento, de toda minha dor e
da minha indignação, falou dos meus filhos e da minha força interior. Falou que
eu iria superar tudo isso, e que o Caminho de Santiago seria o primeiro e o
mais importante passo. Eu escutava olhando para o teto e com vontade de chorar,
a dor atroz no meu coração era muito pior que a dos joelhos. Não entendia como
ele podia saber tanto sobre mim, mas de alguma forma o que ele dizia me
confortava um pouco. Ele continuava massageando meus joelhos e falando, e suas
palavras , mais do que as mãos, foram me aliviando e me remeteram a um futuro
calmo e iluminado.
Depois
de quase uma hora ele pediu que eu levantasse e disse: -“ El verdadero
comienzo de tu peregrinación es la puerta de su casa, en el momento em que la
transpone para iniciar el Camino de Santiago . Su alma ya tomó la decision. Le
toca a usted para seguir su alma.”
Suas mãos seguravam um vidro grande cheio de óleo de amêndoas. Levei
um susto porque na penumbra da tenda seu rosto parecia todo iluminado e envolta
do seu corpo uma espécie de neblina de um azul profundo se estendia formando um
envoltório de quase meio metro, da cabeça aos pés. Se eu tivesse tomado alguma daquelas ervas
teria pensado ser uma alucinação. Mas não, era real. Eu fiquei ali parada por alguns segundos e não sentia mais os meus joelhos.
Tudo
foi muito rápido. Jesus voltou a ser o camponês com pele enrugada
pelo sol a eu comecei a escutar de novo a conversa dos peregrinos. Ele saiu sem dizer nada. Eu fui atrás, no
caminho do meu quarto. Deitei na parte de baixo de um dos beliches e dormi um
sono pesado e sem sonhos. Acordei no dia seguinte com minhas companheiras de
caminho me chamando para o café da manhã.
Senti uma dor lancinante no joelho esquerdo quando pisei fora da cama.
Naquele momento, percebi que não iria conseguir percorrer a íngreme trilha até
o Cebreiro, nosso próximo destino.
Comentários
Postar um comentário