Segredos do Caminho de Santiago- 2ª parte- A Subida do Cebreiro

Rua do Cebreiro

No dia seguinte meu joelho ainda doía muito. Mais que qualquer outro dia do Caminho. Assim que levantei da cama sabia que não ia conseguir percorrer a íngreme trilha até o Cebreiro, nosso próximo destino. Todo peregrino sabe como é importante percorrer a pé todo o percurso. Questão de honra, de fé e de coragem! Eu estava me sentindo muito mal por não poder caminhar. Minha autoestima, que já estava baixa nos últimos meses com todo o processo da minha separação, despencou. E eu me senti a última das criaturas naquela manhã no albergue em Villafranca Del Bierzo.

A solução encontrada foi eu ir de camionete com Jesus Àrias, que iria levar as mochilas dos peregrinos. A trilha era muito íngreme e nuvens pretas vinham, com muito vento, do alto da montanha. Uma tempestade estava a caminho. Assim foi feito. Andreia e Celinha saíram cedo para a trilha, assim como os outros peregrinos, e eu fiquei para trás. Esperei Jesus sentada com bolsas de gelo nos joelhos, inconsolável por não poder ir com elas, lembrando de tudo que Juan havia me falado no dia anterior, sentindo a dor dos meus joelhos e do fim do meu casamento. Até que finalmente pegamos a camionete já com todas as mochilas na traseira coberta, e subimos por uma estrada sinuosa e muito ruim.  Enquanto subíamos a montanha, a tempestade realmente caiu com força e eu imaginava minhas amigas enfrentando grandes dificuldades e eu ali sentada, confortável e seca.

Demoramos cerca de uma hora até o Cebreiro.  Chegamos antes do almoço sob uma chuva fina. A cidadezinha linda em plena Galicia, de construções medievais, parecia saída de uma história celta. Tinha as ruas de piso de pedras grandes, molhadas e escorregadias, as “pedrafitas do Cebreiro”. Uma pequena igreja católica no meio (como em quase todas pequenas cidades por onde passamos) e poucas pessoas nas ruas, talvez por causa da tempestade que tinha acabado de cair. Tiramos todas as mochilas da camionete e colocamos na recepção de um pequeno restaurante onde paramos para almoçar, formando uma grande montanha de mochilas. Ali os peregrinos passariam para pegar suas mochilas antes de ir para o alojamento.

Capela do Cebreiro
Sentei com Jesus e duas outras peregrinas brasileiras que encontramos no restaurante. Comemos, conversamos, tomamos vinho e rimos. Mas por dentro persistia a dor, a dor que não passava. A vontade de que tudo fosse como era há dois anos atrás, quando ainda não havia crise e não se falava em separação. Toda aquela conversa de Jesus fez vir à tona essa dor, que durante os dias anteriores no Caminho havia ficado mais calma e quase esquecida. 

Terminamos o almoço e depois de entrar na igreja e orar, como sempre fazíamos ao chegar nas cidades, peguei minha mochila e fui para o albergue.  Quando sai ainda estava chovendo e demorei uns quinze minutos para chegar lá, mancando debaixo da minha capa de chuva. Com meu cajado, o companheiro de sempre, eu desci as ruas de pedras escorregadias com cuidado. Cheguei no albergue, tomei um banho quente e deitei para esperar minhas amigas.  Aquele dia sem caminhar pelo menos estava fazendo bem para os meus joelhos. Já quase no fim da tarde chegaram Andreia e Celinha, cansadas, ensopadas e perguntando;
-“Onde estão nossas mochilas? Estou doida para tomar um banho e deitar! Foi muito difícil a subida.”
Naquela hora eu gelei e mais ou menos “caí na real”.
-“Suas mochilas? Bem... Ficaram no restaurante! Eu pensei que vocês fossem passar lá para buscar!”
Nessa hora Andreia perdeu todo o controle, começou a gritar:
- “O que? Você não trouxe? Vamos ter que subir até o restaurante para pegar, ainda debaixo de chuva, cansadas? Você não tem um pingo de solidariedade? Porque não trouxe nossas mochilas? Que tipo de amiga e companheira de viagem é essa?“
Eu, Andreia, Celinha e outro peregrino no Caminho

Falava olhando para Celinha que permanecia calada olhando para o chão. Não posso dizer que ela não tinha razão. Eu, mais uma vez,  tinha sido a pessoa egoísta de sempre, só pensando em mim e na minha própria dor.  Procurei me explicar dizendo que eu tinha esquecido, que eu estava muito mal e deprimida, etc... Entendia que elas estavam muito bravas comigo, mas por outro lado esperava que elas entendessem o meu lado também.
-" Desculpa, gente, eu esqueci! Devia ter lembrado, mas não me dei conta de que iria ajudar bastante se eu trouxesse as mochilas de voce! Eu posso ir lá pegar!"





No fim, Andreia saiu muito brava, batendo a porta, para pegar as mochilas. Ali foi uma ruptura. Alguma coisa havia se quebrado entre a gente.  À noite, enquanto elas foram tomar banho e jantar, eu fui para o quarto chorar e dormir. Pensando o que eu iria fazer no dia seguinte, como eu caminharia com elas os  dias que ainda faltavam para chegar a Santiago de Compostela?







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